6.6.12

Gilles Lipovetsky: A Felicidade Paradoxal


Em “Felicidade Paradoxal”, Lipovetsky define, num determinado ponto, cinco grandes padrões nos quais, nas nossas sociedades, o prazer e a felicidade são comandados. Dos cinco modelos, os primeiros quatro foram explorados.


O primeiro está relacionado com a felicidade de fácil e rápido alcance, que provoca decepção e frustração. Este modelo está essencialmente relacionado com o consumo, motivo de “insatisfação insuportável”.
“Proclama-se a euforia, e a desolação dos seres aumenta a cada dia. Opulência material, défice de felicidade; proliferação dos bens de consumo, espiral da pobreza: na sociedade de hiperconsumo, a insatisfação cresce mais depressa que as ofertas de felicidade”. Com o consumismo, são prometidos os prazeres sem fim do ter e gerados sentimentos de desapontamento, desespero, desilusão, tédio, insatisfação.

O autor apresenta duas teses de dois autores: Tibor de Scitovsky e Albert Hirschman. 
Scitovsky questiona-se acerca do desinteresse: o que é que provoca o nosso desinteresse? Porque nos desinteressamos por um bem, produto ou serviço, de modo a adquirir outro?
Segundo Scitovsky, gera-se o desejo por aquilo que é novo face ao que já se possui, o que constitui uma grande fonte de satisfação: a banalidade do que já se tem opõe-se ao inesperado, àquilo que é novidade. Para este autor, há um conflito entre o prazer e o conforto: o prazer é um ‘bem positivo’ e o conforto é um ‘bem negativo’; estes, não se confundindo, excluem-se reciprocamente.
“O consumidor comum vive, não tanto em função da satisfação que lhe proporcionam os bens de conforto, mas sobretudo a tentar evitar os inconvenientes que resultariam do abandono dos mesmos.”(1)

Albert Otto Hirschman sustenta a sua tese enfatizando a decepção como um elemento fulcral e constitutivo da experiência humana. Considera que as experiências de consumo são a fonte ‘numerosas decepções’, pois faz parte da natureza humana a insatisfação e falta de contentamento, e com a abundância de bens e experiências de consumo é expectável que aquilo que esperamos dos bens que consumimos não seja retribuído e gere, inevitavelmente, insatisfação. Hirschman separa ‘bens duradouros’ de ‘bens não duradouros’, no sentido em que, os bens duradouros (e.g. electrodomésticos) geram prazer no momento da aquisição e quando são colocados em funcionamento; depois, proporcionam prazer, e não alegria. Os bens não duradouros  (bens alimentares) são mais resistentes à decepção pelo facto de provocarem prazeres intensos e renováveis.

Lipovetsky, confrontado com a análise de Hirschman, refere que, por estes bens duradouros não provocarem mais prazer, não causam necessariamente desilusão ou desapontamento; a estes bens já não lhes dedicamos atenção, todavia, geram conforto, e raramente podem provocar desilusão (pois estes bens resistem também a oscilações de humor)
“Quanto menos decepcionante se torna a aquisição de bens materiais, mais o acesso aos serviços passa a ser motivo de decepção. Isto porque aquilo que é comprado implica a relação com pessoas, a prevalência da qualidade sobre a quantidade, a vivência emocional mais do que a estrita funcionalidade. Nas nossas sociedades, o conflito já não se situa entre o conforto e o prazer, mas entre a expectativa de uma satisfação e um serviço considerado medíocre.”(2)

A ‘decepção hipermoderna’ é constatável também na vida profissional e afectiva. A esfera profissional, pela desregulação do mercado de trabalho, causa crescentemente sentimentos de insegurança, angústia e dúvida interior.

“Assim é a felicidade paradoxal: quanto mais se exprimem as exigências de proximidade emocional e de comunicação intensa, mais as decepções pontuam a nossa existência.”(3)



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O segundo modelo apresentado por Lipovetsky, está relacionado com as consequências do princípio hedonístico: “exacerbação da vida dos sentidos, prevalência dos desejos de desfrutar do prazer aqui e agora. (...) A época caracteriza-se pela promoção do instante vivido, por uma cultura centrada no ludismo da carne, nas efervescências festivas, na demanda de sensações e êxtases de todo o tipo.”(4)

Constrói-se uma geração que busca a expansão directa das emoções, as ‘experiências psicadélicas’, as ‘formas diferentes da vida comum’, e apela aos prazeres do consumo e ao viver a vida no presente; em vez da família e do trabalho, da disciplina, surge uma geração que celebra o espírito de festa, de ‘concertos gigantes’. Este indivíduo interessa-se superficialmente sobre as coisas; o objectivo é “alargar [/romper] os limites do eu, ‘explodir’, vibrar e sentir, o espírito do tempo apela aos prazeres sem restrição, à subversão das instituições burguesas em nome de uma vida intensa e espontânea.”(5)
Deste modo, o indivíduo pretende sair de si mesmo, os desejos de prazer momentâneos e rápidos. O quotidiano é tornado lúdico. Os espaços urbanos são pensados com uma preocupação estética, de conforto, para serem alvo de momentos de lazer; “toda a vida quotidiana vibra com hinos aos divertimentos, aos prazeres do corpo e dos sentidos.”(6)

“O modelo de felicidade que constrói a sociedade de consumo é diametralmente oposto. Às alegrias colectivas e arrebatadoras da comunidade unida sucederam os prazeres privados do consumo e actividades de lazer. (...) O que domina é a disseminação e a pluralização dos prazeres escolhidos em função dos gostos e aspirações de cada um.” (7)

“O hiperindividualismo não é dionisíaco: ele consome o ambiente dionisíaco instrumentalizando o colectivo com vista à sua satisfação privada.” (7)

O objectivo do indivíduo hipermoderno é ‘encontrar a felicidade no equilíbrio, aceder à harmonia interior, viver em paz, saudavelmente e em forma.’(7)

Contrariamente aos modernos, aquilo que agora se considera essencial para alcançar a felicidade é a “transformação do mundo, a actividade fabricadora capaz de aligeirar o sofrimento, de embelezar a vida, de alcançar cada vez mais satisfações materiais. A modernidade democrática, indissociável dos valores de liberdade e de igualdade, alia-se também à cultura do bem-estar, concretizando o ideal de felicidade terrestre.”

O conforto ganha uma importância exponencial, constituindo um factor de elevada importância para a felicidade individualista de massa; a qualidade de vida significa tranquilidade; os espaços da casa são personalizados e arranjados para reflectir um gosto particular. As próprias funções das diferentes divisões da casa alteram-se (a cozinha ganha mais vida, a sala de estar é um espaço intrinsecamente confortável, os quartos são decorados segundo o gosto do indivíduo; tudo isto, para um bem-estar material envolvente que cresce. Passa-se mais tempo em casa.
O jardim é revitalizado, tal como as restantes divisões da casa: torna-se um jardim hedonista, destinado ao descanso e ao convívio.
As casas são cada vez mais seguras; o bem-estar passa por um sistema de segurança.
O significado do conceito de conforto é alterado, deixa de estar ligado à “indolência, ao calor do lar, aos dispositivos que permitiam ao corpo usufruir da sua plenitude”, para ser um conforto ligado às redes digitais, às interacções virtuais, “um conforto abstracto de comunicação, de encontros e informações libertos de corpo sensível”. (8)

“Os produtos já não se limitam a funcionar eficazmente, mas devem despertar o prazer dos sentidos, oferecer uma qualidade sonora ou olfactiva, fornecer um suplemento de realidade táctil, favorecer uma experiência sensitiva e emocional.” (9)



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O terceiro modelo caracteriza-se pela obsessão pela performance, prazer dos sentidos. Deste modelo faz parte a ideia de um mundo performativo e activista; ‘competição, excelência, urgência’; superação de nós mesmos.
Os atletas e os empresários com remuneração ‘super’ são tidos como heróis, mostram que o indivíduo hipermoderno tem que explorar até aos limites as suas potencialidades: “todos estimulados, todos determinados a ser competitivos, a correr riscos, a chegar ao topo: a cultura da performance evolui em todas as direcções” (10)
A sociedade vive fascinada pelos desportos e desafios que tem que vencer; paixão pela competição; estar-bem com o corpo e a mente (através de actividades saudáveis que possam proporcionar esse equilíbrio, como o ioga, massagens de todo o tipo, entre outros). Há uma clara obsessão pela saúde.
Estetização dos gostos e modos de  vida: “tal como assistimos a uma forte necessidade de embelezamento dos corpos, testemunhamos também, em termos mais gerais, a estetização dos gostos e do modo de vida.”(10)
Verifica-se um gosto e ansiedade tremendos por fins-de-semana prolongados, pontes e férias, para se dar a construção de um equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada. A vida não se centra exclusivamente no trabalho, os interesses e prazeres destinam-se em primeiro lugar na vida familiar e sentimental, no repouso, nas férias, actividades de lazer, viagens, entre outros.

“A dilatação dos territórios do bem-estar que interfere inevitavelmente com a felicidade: à medida que se amplia o imaginário do conforto, cresce o sentimento deprimente de se ser maltratado ou desconsiderado pelos outros. A falta de reconhecimento é, em larga medida, o reverso da medalha de uma sociedade organizada em torno de uma busca desesperada de melhor-estar.” (11)
Desta forma, o bem-estar abrange não só a vida privada, mas também a vida profissional. Cresce o desejo de valorização e reconhecimento pessoal no trabalho, e quando não se é reconhecido, procura-se incessantemente um melhor-estar. O indivíduo hipermoderno pretende sentir-se bem no seu ambiente de trabalho, ser respeitado, e conviver num bom ambiente.



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O quarto modelo menciona a ‘sobre-exposição da felicidade’ e a regressão da inveja, revelando conflitos inter-humanos: “longe de domar as paixões humanas, a civilização do bem-estar exacerba os sentimentos de inveja e ciúme, a rivalidade e as competições invejosas entre iguais” (12)

Hoje em dia, segundo o autor, deixámos de ser consumidores de objectos para passarmos a ser consumidores de intimidade. O hiperconsumidor pretende, não admirar figuras idealizadas com quem se identifica, mas sim experimentar sensações do ‘espectáculo de seres próximos com quem se identificam mais.’(13) Contudo, as estrelas do mundo do espectáculo são veneradas e a sua própria felicidade torna-se objecto de consumo.
“o hiperconsumidor sente prazer em testemunhar a felicidade dos outros.”(14)

A felicidade, nesta fase, é exibida sem medos nem constrangimentos; partilha-se as férias fantásticas, os locais visitados maravilhosos, as experiências magníficas. Apenas ostentar luxos espalhafatosos pode ser visto como algo de mau gosto. Deste modo, “à medida que desaparece o medo da inveja dos outros, aumentam exponencialmente as declarações de felicidade pessoal.” (15)
“Já não nos perturba aquilo que o outro possui em termos materiais, queremos ser mais, sair mais, experienciar coisas novas.”(16)
É considerado felicidade quando o indivíduo vive momentos esmagadores de felicidade, em comparação com os acontecimentos somente satisfatórios do quotidiano da existência. 


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(1) p.137         (5) p.138          (9) p.198           (13) p.162
(2) p.141         (6) p.181          (10) p.224         (14) p.161   
(3) p.146         (7) p.182          (11) p.231         (15) p.272      
(4) p.203         (8) p.195          (12) p.132         (16) p.277        
                                                        
LIPOVETSKY, Gilles, A Felicidade Paradoxal, Edições 70, Lisboa, 2010

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